quinta-feira, maio 16, 2013

Aperfeiçoar a nossa democracia imperfeita

(texto publicado no n º 103 do jornal "Região do Castelo")
 
Durante o debate sobre o “Estado Social”, organizado por este jornal, foi especulado durante alguns momentos sobre o eventual perigo que corre a democracia com o agravamento da actual crise financeira e económica.

A palavra “democracia” é um toldo muito grande e muito elástico capaz de cobrir muitos conteúdos diferentes. Para a maior parte de nós, a ideia de democracia está conectada à “soberania do povo” e consequentemente à“liberdade” e - assim sendo - será que a democracia Portuguesa de hoje corresponde perfeitamente a estes requisitos básicos? A resposta é curta e simples: só parcialmente.

O 25 de Abril entregou o poder - após um período de hesitações turbulentas – não ao conjunto de todos os cidadãos que formam o povo, mas sim aos partidos políticos; assim estamos de facto numa “partidocracia”, conceito em vários pontos restritivo da “soberania do povo inteiro” porque limita obrigatoriamente a diversidade do pensamento individual a cinco, seis ou oito correntes dominantes: quem não se enquadra nelas, não conta. Por exemplo, para quem aprova as escolhas económicas de um partido mas rejeita as suas opções morais (por exemplo, no caso do aborto ou do casamento gay), não existe solução: aceita-se o pacote global ou então abstém-se. Ainda mais frustrante é a situação do eleitor que votou por um partido à base do programa eleitoral apresentado, para depois assistir a uma governação contrária às promessas feitas: ficará impotente para reagir até à próxima ida às urnas.

No lugar da palavra feia “partidocracia” usa-se preferencialmente o eufemismo lisonjeiro “democracia representativa”, uma terminologia bonita que todavia não consegue esconder que aquela fórmula não corresponde ao ideal que a humanidade procura há milénios. Vemos de facto, que neste sistema, a intervenção do povo é limitada a um convite quadrienal para se pronunciar sobre listas cozinhadas dentro dos cenáculos dos partidos e publicitadas com grandes operações de marketing (em parte pagos pelos contribuintes): e aqui acaba o direito de intervenção do cidadão. Em Portugal -ao contrário do que se passa noutros países -, o cidadão independente não pode aspirar a conquistar um assento no parlamento se não for através de uma lista partidária, facto que significa evidentemente um sério esvaziamento do conceito da“cidadania”. Para além disso, também em Portugal, um eleitor não dispõe de qualquer mecanismo para alterar a sequência dos candidatos nas listas como imposta pelos partidos: na realidade, votamos em partidos e não em pessoas. Isto faz com que é quem domina o aparelho do partido que decide quem e em que posição estará na linha de partida para a corrida às cadeiras parlamentares. Assim é compreensível que dentro destes partidos sejam continuamente travadas duras guerras“fratricidas” e que aí floresçam “grupos de pressão”, “correntes”, ”alas” “clãs”, “barões”; todos sabemos que existem abertamente à luz do dia “dinastias familiares ” que se perpetuam às renas de vários partidos e onde os pais, filhos, primos, netos se sucedam de geração em geração, como se tratasse de linhas genéticas superdotadas para representar o povo. Surpreende-me sempre como certos povos optaram por um regime republicano abolindo a existência de castas privilegiadas para depois tolerar o surgimento de “novas nobrezas hereditárias”seja a nível nacional, seja a nível europeu. Há outra atitude pouco democrática em uso nos partidos – quase sempre em conexão com decisões importantes a tomar– que consiste na imposição da famosa “disciplina partidária” que em geral acaba no voto unânime: um atentado intencional à liberdade pessoal.

Tudo isso faz com que o caminho certo para conseguir uma carreira política bem-sucedida seja integrar-se desde jovem nas fileiras de uma ou outra Jota: são na realidade comunidades onde jovens ambiciosos, de algum modo imaturos, são suavemente endoutrinados e formados em “política profissional” sem ter adquirido sérias experiencias da vida real: É sintomático neste contexto que Portugal tenha actualmente tanto como PM ou como chefe da oposição, um elemento oriundo deste microcosmo de predestinação politica, que num passado muito recente também nos legou um José Sócrates e um Miguel Relvas.

A velha “boutade” de Churchill, em que disse que a democracia não é perfeita mas que mesmo assim é o melhor sistema de governação disponível, corresponde provavelmente à verdade. Todavia, em tempos atribulados como os que correm, arrisca-se a ver o cidadão saturado desta democracia parcial e incompleta que não lhe consegue garantir as liberdades básicas, inerentes ao estado social, como são o direito ao trabalho, à habitação, à saúde e ao acesso à justiça e educação. O cidadão em apuros que vê a sua família sofrer dia após dia, mês após mês, pode muito bem sucumbir à tentação de dar ouvidos a figuras messiânicas que pregam outros modelos de governação, especialmente quando estes profetas, além de se perfilarem mais justos, mais honestos e tecnicamente mais competentes também podem projectar uma sociedade com empregos, casas, escolas e hospitais de qualidade e um estado a funcionar. Será que - em situações de desespero-importa muito se a receita para a salvação implica mais autoritarismo e menos liberdade? Existem diversos sinais que testemunham o descontentamento popular para com o sistema em vigor. Vemos sinais negativos como são as grandes percentagens de eleitores que abdicam da sua ida às urnas ou os votos de protesto que resultam na eleição de palhaços (como na Itália ou no Brasil); todavia também há reacções positivas e construtivas como observamos aqui no nosso país e que demostram um empenho cívico acrescido: menciono só a petição pública organizada pelo MIRE (Movimento Independente para a Representatividade Eleitoral), que quer possibilitar candidaturas independentes (não-partidárias) ao parlamento e o Movimento “Revolução Branca” que zela pela interpretação eticamente mais pura e dura da lei de limitação de mandatos para autarcas.

Qualquer estagnação no aprofundamento da democracia origina retrogressão ou desvios e imperativamente a democracia terá de evoluir no sentido da sua definição original: o poder político nas mãos do povo inteiro, sem intermediários nem condicionantes, por outras palavras, a “democracia directa”.É óbvio que um sistema destes implica um povo culto, educado, interessado, informado e imune aos apelos dos manipuladores e populistas, mas no entanto é possível: não só funcionava na antiga Grécia mas também funciona em países bastante evoluídos como a Suíça (a nível nacional) ou na Alemanha (a nível de vários “Länder”).Também alguns estados dos EUA aplicam a democracia directa, o que contrasta bastante com o modelo caricato de democracia aí em vigor a nível federal: há dois séculos, dois partidos, abertamente financiados pelo grande capital e pelos lobbies, monopolizam o poder num regime de alternância.

Pode parecer utópico esforçar-se para a implantação da democracia directa, mas não é: a tecnologia está do nosso lado e é perfeitamente legítimo esperar que dentro de uma ou duas décadas a nossa sociedade seja completamente informatizada e toda a gente sem excepção estará quase continuamente ligada à Internet. Isto abrirá o caminho a uma E-democracia (também chamada DED – Democracia Electrónica Directa ou DDD – Democracia Directa Digital): dezenas de grupos de trabalho em muitos países (Austrália, Reino Unido, Suécia, EUA, etc.) já estão a preparar a transição para a democracia digital. Assim será possível ouvir a voz de todos em tempo real, assim será possível fiscalizar a governação em qualquer momento, assim aumentará a transparência e a qualidade da democracia.

Para terminar, uma última observação ligada à actualidade, sobre um lado algo masoquista de uma parte da sociedade Portuguesa. De facto, consternados e de boca aberta, notamos que se torna um hábito convidar políticos politicamente falhados para serem “comentadores” nos meios de comunicação social. Por outras palavras, é oferecido a pessoas que chumbaram no seu próprio partido ou que foram derrotados nas urnas, um “tempo de antena”para se debruçar sobre a actualidade política, tempo que utilizam efusivamente para explicar o seu falhar e para freneticamente ajustar contas com os seus rivais dentro e fora do partido. E se chamássemos empresários falidos para explicar o empreendorismo ou generais derrotados para filosofar sobre a defesa nacional … Entende quem pode.

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